O trem estava cheio, como de costume.
O meu olhar estava na janela, do lado de fora, como de costume.
O lado de fora sempre parece mais ameno.
Todas as pessoas com seus celulares e fones de ouvido, e eu, com o meu,
como de costume.
Tudo era como de costume. Era um dia qualquer.
Entrou uma senhora, que parou logo na minha frente.
Ela parecia não ter dentes. Era bem pequenininha.
Eu, sentada no assento vermelho, não preferencial, demorei a
percebê-la.
Percebi. Pensei em dar lugar.
Alguém ofereceu antes. Ela não quis.
Eu não ofereci.
Estava ocupada demais com os meus pensamentos e minha música
particular.
Sai a senhora.
Entra um casal.
Quando foi que eles apareceram no lugar dela?
Não percebo o casal.
Percebo um cara sentando no assento a minha frente.
A mulher na frente dele lhe entrega sua mochila.
Ele não esperou para ver se ela queria sentar.
Sentou correndo.
Como é de costume a disputa de lugar pela manhã.
Ela lhe entrega a mochila e murmura qualquer coisa.
Me chama atenção, não sei porque.
Começo a reparar, assim, ainda com fone de ouvido.
Eles não se falam.
Eu logo percebo que eles são um casal.
Como é costume.
Acho um absurdo ele estar sentado, sem nem ter oferecido o lugar para
ela.
Não carregou sua mochila e nem demonstrou qualquer consideração, ou
cavalheirismo.
E isso me revolta por um instante. Me incomoda. E eu reparo nos dois.
Eles não conversam.
Ela olha pra ele o tempo todo.
Ele olha para baixo.
Pega o celular.
Começa a mexer. (Deve ser qualquer coisa, agenda telefônica, joguinho
ou qualquer coisa que tire seu olhar da mulher a sua frente)
Ela começa a olhar. A esticar o pescoço para conseguir ver o que ele
está fazendo.
Eu, com o olhar esquecido da janela e atento ao que está a minha
frente, crio várias interpretações para a “cena” que acontece pra mim e que
ninguém repara, como de costume.
Ele, logo se enche de mexer no celular.
Provavelmente pensa: “Que saco, essa mulher não para de me controlar!”
E pensa o quanto ela lhe irrita e segue seus passos.
Ele, sentindo sua privacidade ferida, sente-se invadido e sem espaço.
Sufocado.
Ela, provavelmente, só quer saber dele. E começa a reparar no que ele
faz e começa a desconfiar do porque ele esconde o celular: “O que será que ele
está escondendo? O que tem de tão importante nesse celular que ele prefere ele
e não presta atenção em mim?”
Ela se sente diminuída, enganada e excluída da vida dele.
Esqueço de mencionar:
Ele, com roupas largas, barba por fazer, cabelo bem curto. Boca escura
de quem fuma muito. Cara de poucos amigos. Uma barriga saliente.
Ela, com a auto estima totalmente destruída, olhos tristes, gorda, boca
escura de quem fuma também. Olhos atentos, pequenos, cabelo preso, mal penteado.
Roupas largas. Mãos inquietas, esmaltes descascados.
Consigo imaginar os dois jovens, casando-se bem cedo.
Consigo ouvir os pensamentos dela: “Ele não era assim quando nos
casamos...”
E os dele: “Preciso trabalhar muito pra pagar aquelas contas...”
E eles não se olham.
Bala de gengibre, um real.
Eles se olham.
Na verdade ela olha pra ele, num murmuro, como quem pergunta: “Você
quer?”
Ele, indiferente, faz uma careta, levanta os ombros, murmura qualquer
coisa também, como quem diz: “Tanto faz!”
Pega o dinheiro no bolso e entrega pra ela.
Ela, espera o moço aparecer. Pega a bala. Guarda o troco na mochila, no
colo dele.
Oferece pra ele, ele nega, num outro murmuro.
Ela abre o pacote, pega uma bala e entrega o saco para ele.
Ele pega o saco, pega uma bala e guarda o saco na mochila.
Ele guarda o papel da bala.
Ela entrega o papel da bala pra ele.
Ele guarda o papel da bala.
Eles não se falam, não se olham.
Ela, numa tentativa de carinho, passa a mão em sua testa, arrumando
ele.
Passa a mão por sua blusa e segura a manga, que é comprida.
Ele, fecha os olhos, como quem tenta dormir pra chegar logo ao destino.
Ela vai fazer um carinho, segurar em sua mão.
Desiste. Só segura a manga da blusa.
Eles comentam qualquer coisa.
Eu não escuto, estou com fones de ouvido.
Nem daria tempo de tirar para ouvir, foi muito rápido.
Devia ser algo sobre o tempo, o trem cheio, o destino que nunca chega
ou outra coisa trivial.
Eu fico imaginando como as pessoas podem ser tão distantes.
Como tudo devia ter sido diferente quando casaram e foi-se destruindo
aos poucos.
Como ao ver os olhos dela, percebi que ela só queria um pouco de atenção.
E olhando os olhos dele, percebi que ele só queria um pouco de espaço.
E olhando os dois juntos, percebi que eles só precisavam de um pouco de
conversa.
Acho que as pessoas nunca mudam.
Elas casam e acham que tudo vai mudar, ou se entristecem quando vêem que
tudo mudou.
A lembrança sempre é mais feliz mesmo.
E as pessoas não mudam.
A única coisa é que, com o tempo, elas param de tentar impressionar
umas as outras,
Param de fazer coisas só para agradar,
Tiram a máscara que vestiram,
Pois não é possível se esconder o tempo todo.
Ninguém agüenta.
E olhando esse “casal”, percebi que minha revolta em não ser o primeiro
casal a se tratar assim...
A minha revolta em ver a distância de dois corpos tão familiares e tão
desconhecidos ao mesmo tempo...
A minha revolta em ver que o mundo que me cerca não me satisfaz...
É só porque não suporto ver como tudo é um costume... Não muda...
E não são eles, os casais, as pessoas que são diferentes e vivem um
absurdo...
Sou eu... Eu sou diferente e não me encaixo nesse mundo...
E eu... Eu sou o absurdo pro mundo.
Sou eu, que deveria mudar.
Sou eu que deveria ter uma religião, um Deus.
Sou eu que deveria ver novela.
Sou eu que deveria ter um emprego de verdade.
Sou eu que deveria ter uma vida normal, como de costume.
Sou eu.... Que não sou o mundo que vejo, todos os dias do lado de
dentro e do lado de fora da janela.
E tudo é como de costume...
E parece que nada muda...